terça-feira, setembro 09, 2008

Onde guardar o lixo nuclear?


Essa é a questão no Brasil. A Finlândia, cujo projeto de depósito virou referência mundial, mostra que não há solução simples


Marcela Buscato, de Olkiluoto, Finlândia para Época

A reação é microscópica: dentro dos dois reatores da central nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, bilhões de núcleos de átomos de urânio se dividem e geram 3% da eletricidade consumida no Brasil. Os resíduos produzidos em duas décadas de operação são de uma ordem bem maior. Quase 446 toneladas de combustível usado – e radioativo durante milhares de anos. Até hoje, esse material não tinha despertado a atenção dos brasileiros. Mas, com a pretensão do governo de retomar seu programa nuclear, o problema apareceu. Há planos para a construção de mais quatro a oito usinas no país. A retomada das obras de Angra 3 já é dada como certa e, até o fim do ano, um comitê de ministros deverá decidir quantas usinas mais serão construídas. Isso aumentará a produção de lixo nuclear.

O problema não é exclusivamente brasileiro. Nenhum país do mundo conta com um depósito definitivo em funcionamento. A solução encontrada até agora, também a usada no Brasil, é guardar esse material dentro das piscinas especiais nas centrais nucleares. É uma solução provisória, até que se encontre um meio de armazenar o combustível usado. Mas que lugar e que tecnologias são suficientemente seguros para garantir o isolamento de um material capaz de emitir radiação em níveis letais por milhares de anos?

O Brasil deparou com essa questão pela primeira vez nas últimas semanas, depois de 23 anos do início da operação de sua primeira usina nuclear. O Ibama, órgão do Ministério do Meio Ambiente encarregado do licenciamento ambiental, condicionou o início da operação de Angra 3, previsto para 2014, à aprovação de um projeto de depósito definitivo. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que promove e fiscaliza a energia nuclear no Brasil, não concordou com a exigência. E quis torná-la mais branda. Comprometeu-se a apresentar até 2010 um modelo do que chamou de “depósito intermediário de longa duração”. Isso significa que o combustível radioativo poderá ficar guardado por 500 anos, em vez de milhares de anos. Segundo a CNEN, o combustível dos reatores, armazenado em estruturas metálicas com varetas contendo urânio, seria colocado em cápsulas de aço e guardado em um depósito escavado em uma rocha ou construído com paredes reforçadas de concreto.

A contenda entre o Ministério do Meio Ambiente e a CNEN expõe um ponto delicado para a expansão do uso da energia nuclear no mundo. A Agência Internacional de Energia Atômica aposta em um crescimento de mais de 20% na geração desse tipo de energia nos próximos 20 anos porque ela é apontada como uma das opções para frear o aquecimento global. Seu ciclo de produção quase não gera gás carbônico, causador do efeito estufa. Mas a questão dos resíduos ainda é um impedimento: além de despertar a rejeição da população, projetar e construir um depósito definitivo encarece os custos da empreitada nuclear. Uma das respostas mais promissoras está no subsolo gelado do extremo norte da Europa. A Finlândia – país de apenas 5,2 milhões de habitantes, conhecido pela agilidade de suas instituições e pelos baixos níveis de corrupção – recebe todos os anos visitantes de diversos países interessados em seu projeto de depósito.

A idéia é construir um sistema de túneis, a 500 metros de profundidade, onde as varetas com as pastilhas de urânio seriam enterradas em cápsulas de ferro fundido e cobre. O custo estimado de construção e operação, 3 bilhões de euros, seria embutido na tarifa de energia paga pelos consumidores. O local já foi escolhido: Olkiluoto, uma ilha na costa oeste do país, que parece ter vocação nuclear. É lá que estão duas das quatro usinas finlandesas, responsáveis por 25% da energia do país. Um terceiro reator está sendo construído na ilha e há um projeto para a instalação de outro. Por isso, a localização do futuro depósito é estratégica: facilita o transporte dos rejeitos radioativos e ajuda na aceitação da população local, habituada à vizinha nuclear, geradora de empregos desde o fim da década de 1970.


O depósito finlandês ainda está na fase de pesquisa. Só começará a funcionar em 2020 – se cumprir os requisitos ambientais


A Posiva, empresa responsável pelo futuro depósito, trabalha em Olkiluoto desde 2004, escavando túneis usados como uma espécie de laboratório subterrâneo, chamado Onkalo (buraco, em finlandês). No futuro, eles farão parte do depósito final, servindo como túneis de acesso e ventilação. Por enquanto, servem apenas como base para verificar se a região é segura para a construção do abrigo. Só em 2012, quando o governo finlandês tiver analisado os dados obtidos em Onkalo, vai decidir se dará a licença para a construção do depósito. Se não houver imprevistos, o depósito começará a funcionar em 2020.

Apesar de ter se tornado referência internacional, o projeto finlandês não é uma unanimidade. Ambientalistas questionam a segurança do modelo e acusam a indústria nuclear finlandesa de vender internacionalmente a idéia de que o depósito já está em construção, embora as obras sejam apenas parte dos estudos.

Isso seria uma estratégia de marketing para amenizar a preocupação popular com os rejeitos nucleares e incentivar a implantação de novas usinas. “A Finlândia está sendo usada como mascote para promover a energia nuclear globalmente”, afirma Lauri Myllyvirta, coordenador da campanha de energia do Greenpeace finlandês.

O modelo nuclear da Finlândia é considerado exemplar pela Agência Internacional de Energia. A nova usina está sendo construída pelas empresas distribuidoras de eletricidade, que recebem a energia a preço de custo. Por isso, podem repassá-la para os consumidores com tarifas mais baratas. A aprovação da população finlandesa a esse tipo de energia também é considerada referência. A indústria nuclear no país faz pesquisas desde 1983 para medir a aceitação popular, que só cresceu de lá para cá. Segundo a última pesquisa, referente a 2007, 43% dos entrevistados apoiavam a construção do novo reator. Mas até a simpatia dos finlandeses à energia nuclear é abalada quando o assunto é o destino do lixo. A mesma série de pesquisas mostra que desde a década de 1980 quase a metade dos entrevistados acha que não é seguro enterrar o combustível usado.

Antes de liberar a construção do depósito, o governo finlandês levará em conta as preocupações de segurança dos ambientalistas. Teme-se que a estrutura do depósito não resista aos milhares de anos necessários para que o lixo nuclear se torne inofensivo porque a geologia costuma mudar naturalmente em uma escala temporal tão longa. Na Finlândia, essa preocupação é agravada porque o gelo escava a superfície do solo e modifica o fluxo dos lençóis freáticos, que podem levar material radioativo para outras regiões. “O depósito fica a menos de 100 metros do mar. Se houver um vazamento, o combustível nuclear pode escapar para o oceano”, diz Myllyvirta, do Greenpeace.

A Posiva afirma que todas essas variáveis estão sendo analisadas. “Não podemos prever o que acontecerá com o ambiente em milhares de anos, nem ter certeza sobre como isso afetará as construções humanas”, diz Timo Seppälä, porta-voz da empresa. “Mas nossos estudos mostram que, mesmo que ocorram alguns vazamentos, não será em um nível nocivo ao meio ambiente.”


Desde a década de 1970, os EUA debatem a construção de um depósito. E ele não ficará pronto antes de 2017


A incerteza sobre a integridade dos depósitos durante milhares de anos explica por que ainda não há nenhuma construção desse tipo no mundo. No Japão, Toyo, a única cidade que se candidatou a abrigar um depósito, em troca de subsídios governamentais, voltou atrás em abril do ano passado. A Suécia, que tem um projeto parecido com o da Finlândia, só deverá escolher o local do depósito definitivo no ano que vem. A França estuda guardar o combustível radioativo em um depósito na cidade de Bure, mas a previsão é de que a construção comece depois de 2015.

O caso mais complicado é o americano. Desde a década de 1970, os Estados Unidos estudam um local para enterrar o lixo nuclear espalhado por 126 instalações, em 39 Estados. Já foram gastos US$ 9 bilhões em pesquisas e na construção de um túnel com 8 quilômetros de extensão e 300 metros de profundidade, na Montanha Yucca, no Estado de Nevada. Até agora, os planos do depósito não saíram do papel.

Algumas das centrais nucleares americanas estão esgotando a capacidade de suas piscinas para armazenar combustível. A usina de Indian Point 2, no Estado de Nova York, está transferindo o lixo altamente radioativo para pátios, onde é armazenado em contêineres de aço e concreto.



PROIBIDO MERGULHAR Piscina com o combustível radioativo usado em Angra 1. É uma solução provisória

O governo americano paga às usinas pelos gastos delas com a administração do lixo, que já deveria ter passado para o Estado. O prejuízo poderá chegar a US$ 35 bilhões. Por isso, está tentando acelerar a construção na Montanha Yucca. Em junho, a Secretaria de Energia submeteu o pedido de licença para a construção. A perspectiva mais otimista é que o depósito seja inaugurado em 2017.

O Brasil ainda está longe de ter um projeto como o dos EUA ou da Finlândia. Não há local definido para o depósito nem estimativa de custo. Os responsáveis pelo programa nuclear brasileiro ainda discutem o que é lixo nuclear. “O combustível usado não é lixo”, afirma o presidente da CNEN, Odair Dias Gonçalves. “Ele pode ser usado novamente porque conserva 40% de seu potencial energético.” É por isso que o projeto brasileiro prevê a construção de um abrigo de 500 anos. O objetivo é reciclar o combustível. É uma promessa que encontra resistência. No reprocessamento, é possível obter plutônio, usado na construção de armas nucleares. Outra desvantagem é o alto custo: por enquanto, reprocessar o urânio sai mais caro que retirá-lo da natureza. “O reprocessamento ainda não é viável”, diz Leonam dos Santos Guimarães, porta-voz da Eletronuclear, a empresa que administra as usinas de Angra. “Mas precisamos dar às próximas gerações o direito de usar essa fonte de energia.”

A aposta de Guimarães nas soluções futuras é partilhada por Anneli Nikula, porta-voz da TVO, empresa operadora das usinas finlandesas de Olkiluoto. “Estamos construindo um depósito tão seguro que não precisará ser monitorado depois de lacrado”, diz. “Mesmo assim, sempre penso que as novas gerações não serão menos inteligentes que nós. Elas encontrarão maneiras mais fáceis de controlar a radiação.” O dilema do lixo nuclear é que só no futuro distante ficará claro se deixamos um belo presente ou um grande fardo para as futuras gerações.


Viagem Final do Urânio

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